O cientista Pedro Curi Hallal, epidemiologista (portanto, especialista no estudo de fatores que influenciam a prevalência, a evolução numérica e o prognóstico médio de uma doença qualquer diante de certos recortes populacionais) deixou de lado o que aprendeu em anos de estudo e pesquisa e foi lacrar no Twitter. Num tuite publicado anteontem, e que já recebeu mais 19 mil coraçõezinhos até o momento desta postagem, ele assegura que se o Brasil tivesse apresentado um enfrentamento mediano da pandemia, teríamos salvo quase 500 mil vidas.
O cálculo apresentado pelo epidemiologista se baseia numa mera comparação entre a média global no número de mortes atribuídas a covid-19 (cerca de 618 mortes por milhão) e a taxa brasileira (cerca de 2.811 mortes por milhão). Para o cientista, a julgar pelo tuite, qualquer outra variável poderia ser descartada e todas as mortes brasileiras que excedem à média global poderiam sem explicadas suficientemente pelo nosso “enfrentamento abaixo do mediano” à pandemia.
Este não é o tipo de análise que se espera de um epidemiologista, profissional cuja maior competência esperada – repito – é a de analisar friamente os fatores que resultam em incremento ou redução do risco de transmissão de uma doença e de evolução deste ou daquele prognóstico em dados recortes demográficos (países, por exemplo).
No caso da covid-19, uma doença transmissível por espécimes virais disseminados pelo ar, é quase automático pensar em densidade populacional como uma variável a ser considerada. A covid-19 é uma doença que mata quase exclusivamente pessoas idosas, de sorte que a estruturação etária (expectativa de vida) da população parece outro fator obviamente relevante. A covid-19 (como qualquer outra doença viral) depende de proteínas presentes no organismo do hospedeiro para se manifestar, as características destas proteínas podem variar de população para população devido a polimorfismos genéticos e que afetar as estatísticas de diversas maneiras. Sabe-se que o risco de morte por covid-19 está associado a alguns fatores relacionados à saúde prévia do hospedeiro, como obesidade, hipertensão e diabetes, de modo que o percentual de pessoas que padecem destes fatores é outra variável a provavelmente influenciar os resultados de país para país. Estas não são as únicas variáveis que podem ajudar a compreender as diferentes formas como a pandemia afetou (especialmente no número de mortes) cada país.
Outro fator de relevo na consideração sobre os dados é a existência de critérios distintos de classificação, bem como evidências de rigor distinto na notificação. Há inúmeras outras sendo pensadas e estudadas por cientistas, sobretudo por colegas de Hallal, especialistas em epidemiologia.
Pedro sabe que seu raciocínio está equivocado, é limitado e tosco: temos certeza de que ele sabe por conta de um artigo publicado por ele próprio no ano passado.
No paper “Diferenças nas taxas de mortalidade por covid-19 ao redor do mundo”, ele destaca a necessidade epistemológica de ter em mente as diferenças de densidade populacional e de expectativa de vida ao comparar os índices de mortes de diversos países e, embora não tenha encontrado diferença estatística entre países com distintas densidades populacionais, encontrou influência em função da estruturação etária da população. Outros pesquisadores, entretanto, encontraram forte efeito da densidade populacional quanto ao número de morte, em suas análises, contrariando parte dos achados de Hallal.
PAÍSES AFRICANOS DEVEM SER USADOS COMO MODELO PELOS PAÍSES EUROPEUS?
Pelo raciocínio apresentado pelo epidemiologista em seu tuíte, que reduz à variável “enfrentamento da pandemia” a explicação de totalidade das mortes brasileiras excedentes à média global, os países da África seriam grandes modelos globais e suas estratégias de “enfrentamento da pandemia” deveriam ser seguidos pela grande maioria dos países europeus e americanos.
Já países que sempre foram apresentados como exemplos no enfrentamento da doença (como Argentina, Alemanha e Bélgica) deveriam ser rechaçados, como demonstra muito bem o usuário @WeiseFranklin em resposta a Hallal.

A média mundial de mortes por milhão atribuídas à covid-19 é de 618,96. Enquanto América do Norte, América do Sul (no cálculo do Our World in Data isto inclui o que chamamos de América Central) e Europa estão bem piores que a média, Ásia, África e Oceania têm taxas bem menores.
Enquanto a Alemanha apresenta um número de mortes cerca de duas vezes pior que a média e Argentina e Brasil estão com aproximadamente quatro vezes mais mortes que a média global, Angola tem menos de um décimo da média global de óbitos e a Nigéria vai ainda melhor. Obviamente as explicações para as diferenças de um país qualquer em relação à média de mortes por covid-19 não se limitam às diferenças no enfrentamento da pandemia por cada país, mas a também a fatores intrínsecos já discutidos acima e a outros não mencionados aqui.
Uma outra hipótese que me parece bastante relevante (e frequentemente desconsiderada no debate público, mas não do acadêmico) é a de que polimorfismos nos receptores ACE2 estejam relacionados a diferentes padrões da pandemia em diversas regiões geográficas do mundo. Os receptores ACE2 são proteínas humanas envolvidas na progressão da doença, e estas proteínas podem ser diferentes de pessoa para pessoa, com algumas populações possuindo mais frequentemente um tipo enquanto outras populações tendo mais pessoas portadoras de outro tipo da mesma proteína. Um grupo de pesquisadores da UFPA publicou na Plos One um artigo intitulado “Polimorfismos de ACE2 como potenciais agentes nos resultados da covid-19”, centenas de outros grupos de pesquisa têm investigado a mesma hipótese, muitos deles encontrando associações, como se vê numa rápida busca pelo Google Acadêmico.
O fato é que as diferenças dos índices do Brasil para a média mundial quanto ao número de mortes, bem como as diferenças de Europa, África, Argentina, Bélgica, Peru, Austrália, Angola são resultantes de uma ampla gama de fatores bem estabelecidos ou ainda sob investigação, dos quais a resposta governamental à doença ou, nas palavras do epidemiologista, o “enfrentamento da pandemia” não são descartáveis e talvez não desprezíveis, mas não são — definitivamente — o todo da explicação.
Ao tratar o “enfrentamento da pandemia” como a única e suficiente explicação para diferença brasileira em relação à média global no número de mortes, Hallal afirma, por tabela, que Angola e Nigéria foram invejáveis exemplos de enfrentamento e que Alemanha e Bélgica foram absolutos fracassos. Isto se podemos esperar alguma coerência do cientista ativista com sua tese tuiteira.
A melhor resposta ao cientista, dentre as que vi, ficou por conta de Pedro Burgos, professor, jornalista e programador que já atuou por veículos como Superinteressante, Gazeta do Povo, Jornal do Brasil, Gizmodo Brasil e The Marshall Project.
Ele próprio um crítico do governo federal e do manejo deste à pandemia, chamou a atenção para a possibilidade, não cumprida pelo epidemiologista, de se manter crítico a Bolsonaro sem, para isso, fabricar análises quantitativas tão estapafúrdias quanto as divulgadas por Hallal. Ou, como Burgos nomeou, muito apropriadamente, sem o uso de lacromatemática. É isto.
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