Em setembro de 2021 chequei uma notícia falsa disseminada por Debora Diniz em seus perfis nas redes sociais. A informação desonesta dava conta de que 3 em cada 4 mulheres diagnosticadas com câncer são abandonadas pelos seus companheiros amorosos durante o tratamento. Debora compartilhou suas postagens numa matéria veiculada pelo Le Monde Diplomatique Brasil. O Le Monde, por sua vez, apontava como fonte uma matéria de um portal noticioso obscuro. E este, a seu tempo, apontava como fonte um texto do portal CBN.
Ao checar a fake news (que não chamou a atenção de nenhuma das agências de checagem famosas como Lupa, Aos Fatos, Estadão Verifica ou E-Farsas) apresentei cerca de 10 estudos científicos internacionais que desmentem as alegações apresentadas por Diniz, pelo Le Monde e pela CBN.
Contudo, cerca de um mês depois a deputada conservadora Claudia Zambelli propôs um projeto de lei sexista que determina que mulheres portadoras de câncer em remissão tenham preferência na aprovação de concursos públicos (inclusive em relação a homens portadores do mesmo quadro de saúde, o que dá ao projeto um caráter sexista e discriminatório contra os homens portadores da mesma doença em mesmo estado de tratamento).
No texto de apresentação do projeto, a deputada cita a mesmíssima entrevista da CBN e afirma que: “Segundo dados da Sociedade Brasileira de Mastologia (SBM) divulgados em entrevista à Rádio CBN no ano de 2019, 70% (setenta por cento) das mulheres diagnosticadas com câncer de mama são abandonadas por seus cônjuges, trazendo inclusive dificuldades de ordem financeira a essas pessoas.”
Eu já havia demonstrado em post anterior que a tal entrevista à Rádio CBN não contava com nenhum membro do corpo diretor da SBM, que havia sim uma médica mastologista entre as participantes do programa, mas que o dado de “mais de 70% de mulheres abandonadas” saiu da boca de uma ativista médica que não apresentou fonte alguma para sustentar a sua afirmação. A CBN, sem indicar a origem do número alegado, usou a frase como título do texto que divulgava o programa.
De qualquer modo, por desencargo de consciência, enviei à Sociedade Brasileira de Mastologia solicitação de explicação sobre a origem de tais dados. Primeiro enviei o questionamento pelo formulário disponível no site da entidade, e não recebi qualquer resposta além de uma mensagem padrão automática confirmando o envio das questões. Numa segunda tentativa, decidi encaminhar diretamente as perguntas ao e-mail do diretor da entidade, que prontamente me respondeu.
Como já previa, a SBM negou em absoluto que tenha produzido qualquer estudo com tal percentual e afirmou que desconhece a existência de alguma pesquisa produzida por outro órgão que aponte tal resultado, como pode ser lido na nota abaixo, assinada pelo presidente da entidade, e que me foi enviada por e-mail.

De fato, como pontuou Vilmar Marques de Oliveira, o presidente da Sociedade Brasileira de Mastologia, e como eu mesmo já havia mencionado na referida checagem sobre a fake news divulgada pela Debora Diniz, há estudos que apontam até cerca de 20% de taxa de separação após diagnóstico de câncer. Há também estudos que não apontam aumento do risco de separação. E outros até que indicam uma melhora da qualidade marital durante o tratamento. Não é possível afirmar que 20% das mulheres são abandonadas pelos maridos durante o tratamento de câncer com base na literatura acadêmica. Não é possível afirmar que haja uma diferença baseada em sexo neste aspecto.
Em um estudo dinamarquês e outro norueguês não houve aumento relativo (exceto nos cânceres diretamente associados ao sistema reprodutivo, nomeadamente os de colo de útero e de testículo) nas taxas de divórcio, seja para homens ou para mulheres, em comparação à população em geral. Num estudo conduzido em Salt Lake City, Utah e direcionado apenas a pacientes jovens foram homens quem enfrentaram o maior percentual de “abandono” na faixa entre “20 a 29 anos”, mas não na faixa entre “30 e 39 anos”. Num estudo português conduzido por uma especialista da Universidade de Coimbra, mulheres portadoras de câncer de mama relataram que seus casamentos melhoraram após o diagnóstico, tanto em relação à percepção delas próprias sobre a qualidade da relação antes da doença, quanto em comparação às respostas dadas por um grupo controle formado por mulheres saudáveis.
Mesmo que existissem apenas estudos indicando 20% de taxa de separação, o que não é verdade; e mesmo que estes estudos apontassem uma clara desvantagem feminina neste cenário, o que também não é verdade; 20% não é 70% como a Zambelli mentiu em seu projeto de lei nem 75% por cento como a Debora Diniz desinformou em seus perfis nas redes sociais.
APESAR DE POSICIONAMENTO POR E-MAIL, SOCIEDADE BRASILEIRA DE MASTOLOGIA NÃO SE PREOCUPOU EM DESMENTIR PUBLICAMENTE A NOTÍCIA FALSA
No dia 07 de dezembro de 2021 a Sociedade Brasileira de Mastologia publicou em seus perfis nas redes sociais o desmentido de uma fake news em que um áudio trasmitido pelas redes sociais atribuia falsamente à Sociedade Brasileira de Mastologia algumas alegações sobre a variante Omicron. A SBM publicou também em seu site oficial uma nota de posicionamento sobre a fake news, dando ampla publicidade, portanto, ao desmentido.
A mesma medida foi sugerida por mim nas mensagens que encaminhei à Sociedade, mas a SBM não achou relevante tomar a mesma atitude em relação à afirmação falsa (e falsamente atribuída à SBM) divulgada por Zambelli. Embora tenha confirmado, como se era de esperar, a falsidade da alegação feita por Zambelli em seu projeto de lei (de que “Segundo dados da Sociedade Brasileira de Mastologia (SBM) divulgados em entrevista à Rádio CBN no ano de 2019, 70% (setenta por cento) das mulheres diagnosticadas com câncer de mama são abandonadas por seus cônjuges”), o órgão não fez publicidade em suas redes sociais e perfis institucionais.
Talvez por entender, também a SBM, que a fake news usada por Zambelli como justificativa para a criação de mais um projeto de lei discriminatório é uma fake news do bem.
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