Recentemente falei de alguns projetos de lei que pretendem alterar a legislação relativa aos ditos “crimes contra honra”: injúria, difamação e calúnia. Injúria é o crime de xingar alguém; difamação é o crime de fazer alegações públicas relativas a alguém ter feito algo vexatório, vergonhoso, mas que não seja crime; calúnia é o crime de fazer alegações públicas falsas sobre alguém ter cometido um crime. A injúria é dividida na lei entre “simples” e “qualificada”, a “qualificada” se refere aos xingamentos que fazem menção à etnia, à origem, à velhice, à deficiência ou à religião da vítima (o Supremo Tribunal Federal entende que também é injúria qualificada se a menção for à homossexualidade da vítima, mesmo que isto não esteja escrito na lei: saiba mais).
Pela lei atual a coisa mais grave que se pode cometer contra a honra de alguém é um xingamento com base nos critérios listados acima: xingar um evangélico de “crente filho da puta” seria mais grave do que acusar alguém – falsamente – de ter cometido estupro.
Eu sei, você não concorda com esta classificação, mas é o que está estabelecido na lei: se alguém, num debate na internet, xingar uma pessoa idosa usando os termos “vai tomar no cu, seu velho filho da puta” a pena pode ser de até 9 anos de cadeia. Se a divulgar fotos da mesmíssima pessoa idosa pelas redes sociais, indicando falsamente que ela cometeu um estupro, a pena é mais leve: no máximo 6 anos.
A deputada Clarrissa Garotinho quer dobrar a meta. Ela pretende que o crime de xingar alguém fazendo, por exemplo, referência à sua etnia, tenha pena aumentada. Ao mesmo tempo, a deputada defende que acusar alguém falsamente de ter cometido um estupro deixe de ser crime. Kim Kataguiri apresentou projeto semelhante. Veja no post abaixo, publicado pelo perfil Manas e Manos no Instagram, um resumo extremamente didático dos diversos projetos de lei que tramitam atualmente no Congresso.
De acordo com as justificativas da deputada, xingar uma pessoa com xingamentos normais ( “filho da puta”, “vai tomar no cu”, “arrombado”) ou acusá-la falsamente de ter cometido um estupro são ações que “não têm potencial ofensivo para causar danos à sociedade”. Já xingar uma pessoa de “macumbeiro safado” ou “aleijado filho da puta” teria tanto “potencial ofensivo para causar danos à sociedade” que deveria ter sua pena aumentada.
Um exemplo didático das implicações de uma calúnia vem da cidade de Belford Roxo, na região metropolitana do Rio de Janeiro.
Cesar de Jesus Amorim Costa é um homem negro, um pedreiro, que foi acusado de ter cometido um estupro: boatos foram divulgados por toda a cidade de que ele seria autor de uma violência sexual depois que alguém assistiu um vídeo de câmeras de segurança e associou a imagem do criminoso a ele. Fotos dele foram espalhadas pelas redes sociais e ele passou a sofrer ameaças constantes de morte.
O jornal Extra informa que “De acordo com o comissário Ribeiro, da Delegacia de Atendimento à Mulher de Belford Roxo, a prisão do verdadeiro suspeito foi registrada pela 62ªDP, quando ele cometeu o mesmo crime em Duque de Caxias, e foi pego em flagrante por policiais militares, segundo a polícia, no dia 7 de maio. Familiares do próprio criminoso que teriam ajudado a identificá-lo. O advogado da vítima do crime de Belford Roxo, Denis Venâncio, também confirmou que o verdadeiro suspeito está preso e já foi denunciado pelo Ministério Público. Ele já respondeu a vários processos na Justiça por roubo.”
Aqui temos um típico caso de calúnia, crime sobre qual a deputada Clarissa Garotinho, o deputado Kim Kataguiri e o senador Veneziano Vital do Rego apresentaram projetos de lei propondo que seja retirado do Código Penal
A calúnia não deve ser confundida com a denunciação caluniosa: na denunciação caluniosa a pessoa vai até a delegacia prestar denúncia falsa, esta continuaria sendo crime. Os dois tipos de crime podem acontecer simultaneamente (por exemplo: se a pessoa vai até a delegacia fazer uma denúncia falsa ao mesmo tempo que distribui mensagens no WhatsApp sobre a acusação ela cometeu denúncia caluniosa ao ir à delegacia e calúnia ao disseminar os posts no WhatsApp). Cesar foi vítima de ambos.
Cesar teve que se mudar de sua residência, para um outro município, já que mesmo depois da questão ter sido esclarecida diante da polícia, populares continuavam divulgando sua imagem pela internet e clamando por vingança. Ele gravou um vídeo narrando sua história e implorando para que o caso seja compartilhado. Ele clama pelo direito de retornar à cidade onde mora, voltar a estudar e trabalhar.
Cesar é negro. De acordo com os projetos apresentados por Clarissa Garotinho e por Kim Kataguiri acusá-lo de um crime tão grave não deveria resultar em punição criminal contra os detratores, mas se algum dos falsos acusadores tiver feito menções demeritórias sobre a sua etnia, aí sim os agressores deveriam ser punidos.
Tenho certeza de que Cesar concorda com a balança usada pelos nossos amados legisladores, tenho certeza de que ele prefere passar pelo inferno que está passando do que ser xingado de negro numa discussão. Vai vendo.
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