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A antropóloga, professora universitária e ativista feminista Debora Diniz publicou ontem a noite em seu perfil no Twitter que “3 em cada 4 mulheres em tratamento de câncer são abandonadas pelos seus maridos”. A mensagem era acompanhada de um link para o site do Le Monde Diplomatique Brasil.
Chama atenção, contudo, num momento em que se exige sempre fontes científicas para qualquer tipo de afirmação (a própria Debora Diniz escreveu um artigo há alguns anos atacando o filósofo Olavo de Carvalho pelo fato de ele não possuir um currículo Lattes para apresentar) a absoluta ausência de fontes acadêmicas que suportem o alegado percentual.
A fonte apresentada por Daniela Louzada, autora do texto publicado pelo Le Monde e compartilhado pela antropóloga, foi um hiperlink para o inexpressivo portal de notícias Tribuna de Jundiaí. O Tribuna de Jundiaí, por sua vez, indica como fonte uma outra matéria jornalística, desta feita uma reportagem da Rádio CBN. O texto veiculado pela emissora do Sistema Globo de Rádio, entretanto, não apresenta nenhuma fonte acadêmica para a afirmação – presente no título da reportagem – de que ‘Mais de 70% das mulheres diagnosticadas com câncer de mama são abandonadas pelos maridos’.


Uma busca pelo Google Acadêmico, ferramenta do Google destinada especificamente à procuira por artigos científicos, nos dá a resposta sobre a ausência de fontes para a recorrente alegação feminista. É que a ideia de que cerca de 3 em cada 4 mulheres sejam abandonadas pelo marido após um diagnóstico de câncer não tem qualquer amparo científico. Antes o contrário: há farto acúmulo de evidência de que tanto homens quanto mulheres casados com pessoas que se deparam com um diagnóstico de câncer geralmente permanecem ao lado do companheiro.
A lenda urbana sobre este tema não é nova. Já em dezembro de 2002 a revista acadêmica Cancer Practice publicou um artigo intitulado: “Partner Abandonment of Women with Breast Cancer: Myth or Reality?” (Abandono de mulheres com câncer de mama pelos parceiros: mito ou realidade?”). O resumo nos diz que “O pequeno número de estudos realizados sobre o tema desde 1988 não revelou dados que confirmassem o modelo de crença popular, que propõe que mulheres com câncer de mama sejam abandonadas por seus parceiros. As evidências parecem apoiar o modelo de crença clínica de que a maioria das relações conjugais permanece estável após o câncer de mama e que o colapso é mais provável nas relações com dificuldades pré-existentes.“
Como explicado, o artigo foi baseado numa revisão acadêmica feita sobre restrito número de estudos anteriores e não é muito recente. Entretanto, já um bom indício da falsidade da alegação disseminada pela professora e – recorrentemente – por tantos feministas.
OUTROS ESTUDOS
Em 2010, pesquisadores da Universidade de Coimbra publicaram o “Marital quality among women with breast cancer: The role of marital intimacy and quality of life” ( “Qualidade conjugal entre mulheres com câncer de mama: o papel da intimidade marital e da qualidade de vida” ), baseado no acompanhamento de 47 pacientes portadoras de câncer de mama. A conclusão não poderia ser mais contrária à crença disseminada por feministas: “O diagnóstico de câncer de mama não parece estar associado ao declínio da qualidade conjugal. Além disso, nossos achados destacaram a importância de compartilhar com o parceiro as informações relacionadas ao câncer, bem como a importância de manter uma boa qualidade de vida psicológica no início da doença.”, indicaram os estudiosos portugueses.
Em 2020, pesquisadores de duas unidades hospitalares turcas publicaram o estudo “Is early-stage breast cancer risk for marital-dissolution?” (“O câncer de mama em estágio inicial é um risco para a separação conjugal?”). Foram investigadas 583 mulheres casadas diagnosticadas com câncer de mama. Destas apenas 21 (3,6%) estavam separadas após o tratamento. E mais: destas 21 mulheres, o estudo informa que 12 queriam se divorciar, não foram abandonadas. Ou seja: o percentual de mulheres realmente abandonadas pelos maridos durante o tratamento (tendo sido este o motivo do abandono ou não) foi de pouco mais de 1%.
Saindo do campo de um câncer exclusivamente feminino, encontramos o artigo “Marital adjustment, satisfaction and dissolution among hematopoietic stem cell transplant patients and spouses: a prospective, five-year longitudinal investigation” ( “Ajuste conjugal, satisfação e dissolução entre pacientes com transplante de células-tronco hematopoéticas e cônjuges: uma investigação longitudinal prospectiva de cinco anos” ). A amostra se baseou em 121 pacientes com “câncer no sangue” que eram legalmente casados. Dentre os que sobreviveram por 5 anos após o começo do estudo, apenas quatro se separaram, dois casos para cada sexo.
Este é um detalhe importante: ao escolherem especificamente um câncer que só acomete a mulheres, feministas dificultam a resposta da pergunta mais importante diante de qualquer dado feminista: “e os homens?”
Ainda que fosse verdade que 70% ou 75% dos homens abandonam suas esposas durante o tratamento de câncer, este dado só ganharia significância se o número de esposas que abandonam seus maridos na mesma situação fosse substancialmente inferior.

A seguir, encontramos o paper “Does cancer affect divorce rate?” (O câncer influencia a taxa de divórcio?). Um estudo com amostra gigantesca, muito maior que qualquer dos estudos analisados até aqui, e que investigou a prevalência de divórcio associada a qualquer tipo de câncer entre noruegueses.
Os pesquisadores usaram dados dos sistemas estatísticos oficiais do país para comparar as taxas de divórcio na população geral com as taxas de divórcio entre pacientes diagnosticados com câncer. Foram considerados registros de mais de 1 milhão de cidadãos. O resumo do artigo aponta que “A maioria das formas de câncer resultou em diminuições pequenas e imediatas nas taxas de divórcio, nos primeiros anos após o diagnóstico. As exceções foram aumentos significativos nas taxas de divórcio para pessoas com diagnóstico de câncer de colo de útero e câncer dos testículos.“
Ambos os cânceres em que foi encontrado aumento na taxa de divórcio são cânceres associados à saúde sexual/reprodutiva, um exclusivamente feminino e outro exclusivamente masculino. Ao ler o artigo, contudo, descobrimos que a taxa de divórcio na Noruega é de aproximadamente 17% tanto para homens quanto para mulheres. O artigo nos informa também que o câncer de colo de útero aumenta em 40% o risco de divórcio para mulheres enquanto o de testículos aumenta em 20% para os homens. O resultado do aumento, portanto, não se aproximaria nem de perto dos 75% divulgados pela Debora Dinis, mesmo que considerássemos o único tipo de câncer feminino em que os pesquisadores observaram algum efeito significativo.
Um estudo com método semelhante, baseado em dados da vizinha Dinamarca foi intitulado “Are cancer survivors at an increased risk for divorce? A Danish cohort study” ( “Os sobreviventes do câncer correm um risco maior de divórcio? Um estudo de coorte dinamarquês” ). A base de investigação foram cerca de 260 mil registros civis de pacientes diagnosticados ou não com câncer. Os achados indicaram que “Exceto para sobreviventes de câncer de colo do útero, que tinham um risco aumentado de divórcio, descobrimos que sobreviventes de câncer não tinham maior risco de divórcio do que a população em geral. Essa descoberta mostra que os sobreviventes do câncer não precisam ter temores desnecessários por seu casamento.”
Finalmente, no sexto artigo que encontramos, achamos algo que parece sustentar a crença feminista. Vejamos. O artigo é intitulado “Marriage and divorce among young adult cancer survivors” (“Casamento e divórcio entre jovens sobreviventes de câncer”) e foi publicado em 2012 no Journal of Cancer Survivorship. Os autores dizem, no resumo, que “Entre os participantes já casados, os sobreviventes corriam um risco maior de divórcio ou separação amorosa do que os controles . O risco de divórcio ou separação amorosa persistiu para mulheres sobreviventes, sobreviventes com idades entre 20-29 e sobreviventes com 30-39 anos.”
Lendo a sessão de resultados descobrimos algumas informações não apresentadas no resumo. A comparação foi feita entre jovens de 20 a 29 e 30 a 39 anos de ambos os sexos. Foram comparados os status quanto à separação de jovens que tinham enfrentado um câncer contra jovens que não tinham enfrentado um câncer, da mesma faixa etária.
Entre os homens de menos de 20 a 29 anos, a taxa de separação para os que haviam tido câncer foi de 31% contra 9,6% no controle. Para mulheres na mesma faixa etária, 24,1% entre as pacientes e 11,1% entre o controle. Na faixa de 30 a 39 os achados foram 10,3% e 9,3% para homens e 23,1% e 12,3% para mulheres.
O problema é que o estudo informa, na conclusão, que a diferença entre mulheres foi estatisticamente significativa e a diferença entre homens não. Neste momento você pergunta: como pode uma diferença de 24,1% contra 11,1% ser estatisticamente significativa e uma diferença de 31% contra 9,6% não ser?
Tamanho da amostra. Ou seja: a diferença percentual encontrada para homens foi maior que a encontrada para mulheres. Acontece que o estudo contou com 1 036 investigados do sexo feminino e 162 do sexo masculino no grupo tratamento e isto dificulta a comparação, fazendo com que um percentual menor de diferença entre mulheres apresente um p-valor mais significativo.
Além do mais, em nenhum dos grupos, para nenhum dos tipos de câncer, o percentual sequer se aproximou dos 70% ou 75% divulgados por CNN ou Debora Diniz (considerando que estamos falando aqui especificamente de jovens, um grupo em que – como observado através do grupo controle – já costuma ter altas taxas de divórcio).
Mais um estudo turco, este com pacientes portadores de linfoma, intitulado “Is Autologous Stem Cell Transplantation a Risk For Divorce in Lymphoma Survivors?” ( “O transplante autólogo de células tronco é um risco de divórcio para sobreviventes de linfoma?” ) apresenta o seguinte resultado resumido: “A mediana de idade de 95 pacientes incluídos no estudo foi de 50 (21-69 anos). A maioria dos pacientes eram do sexo masculino (n: 72, 75,8%). Oitenta (84,2%) dos nossos pacientes ainda eram casados. A duração mediana de casamento nesses pacientes foi de 30,01 anos (2,5-48,5 anos). Dos 15 (15,7%) pacientes solteiros, 4 (4,2%) haviam se divorciado após transplante. Observou-se que gênero, situação educacional, situação profissional, local de residência, gravidez e tipo de linfoma não foram associados às taxas de divórcio.“
ACRÉSCIMOS À CHECAGEM ORIGINAL: MAIS ALGUNS ARTIGOS ACADÊMICOS
Adicionalmente, após a publicação da primeira versão deste texto, um seguidor da página no Facebook enviou mais um artigo que se debruça sobre o tema.
No estudo de 2009, publicado na revista acadêmica Cancer, e intitulado “Gender disparity in the rate of partner abandonment in patients with serious medical illness” (“Disparidade de gênero nas taxas de abandono em pacientes com sérias condições médicas”) foram analisados os dados de 515 pacientes portadores de um dos três seguintes tipos de doença: câncer no cérebro, câncer sólido em outra região do corpo e esclerose múltipla.
Ao contrário dos quatro estudos comparativos mencionados anteriormente, os achados desta pesquisa apontaram um maior risco de mulheres doentes sofrerem divórcio diante das doenças analisadas, entretanto numa razão muito distante daquelas divulgadas pelo Le Monde Diplomatique Brasil, pela CBN e pela antropóloga Debora Diniz. Neste estudo a taxa de divórcio entre as mulheres investigadas foi de aproximadamente 1 em 5 em vez dos 3 em 4 mencionados pela antropóloga.
Achados acadêmicos levemente diferentes uns dos outros são esperados: aspectos da amostra ou da metodologia podem interferir nos resultados. O estudo português citado anteriormente, por exemplo, foi baseado no acompanhamento clínico (de perto) de uma pequena amostra de pacientes. Já os estudos dinamarquês e norueguês consistiram das análises de gigantescas amostras contidas em bancos de dados oficiais de ambos os países. É possível que, nestes últimos estudos, alguns dos pacientes estivessem de fato separados, mas não legalmente divorciados, por exemplo.
O novo achado provocou novas buscas e foi, então, encontrado o estudo “Gender differences in associations between cancer-related problems and relationship dissolution among cancer survivors” (Diferenças de gênero em associações entre problemas relacionados ao câncer e dissolução de relacionamentos entre sobreviventes de câncer”).
Como indicado no título, o artigo aborda uma ampla gama de relações de causa e consequência associadas ao diagnóstico de câncer, mas em específico no que se refere ao tema deste post os achados são coerentes com os achados dos demais estudos listados acima. A pesquisa se baseou em um banco de dados específico sobre câncer, contendo informações sobre pacientes estadunidentes: foram analisados os dados de 6 099 pacientes, sendo 3 200 homens e 2 899 mulheres. Destes, 3 106 homens e 2 714 mulheres permaneciam casados após o fim do tratamento.
A taxa de separação nesta amostra foi de 6,04% para mulheres e 2.9% para os homens. Novamente a razão (de aproximadamente 1 em cada 16 mulheres) encontrada é muito distante da razão de 3 em cada 4 divulgada por Debora Diniz.