Rio de Janeiro, 08 de outubro de 2020
“Argentina tem tido sucesso na luta contra o avanço do coronavírus: O governo do presidente peronista Alberto Fernández ordenou uma quarentena compulsória e rigorosa em 20 de março, com duração inicial até 14 de abril. Depois de prorrogá-la até 10 de maio, decidiu revisar a medida a cada duas semanas.”, dizia o Correio Braziliense em 30 de abril; “Com medidas mais rigorosas, países vizinhos ao Brasil dão exemplo no combate à Covid-19: Argentina, Colômbia e Paraguai são exemplos de países que estão muito à frente do Brasil na contenção da Covid-19. Brasil tem mais casos do que todos países da América Latina juntos.”, relatava o site do Fantástico, da Rede Globo em 10 de maio; “Argentina contém Covid com quarentena rigorosa e até ameaça de prisão“, anunciava o UOL em 04 de maio.
Na matéria do UOL, o jornalista Arthur Sandes informava que a Argentina não apenas recomendava que as pessoas ficassem em casa, proibia: quem saísse de casa poderia ser preso se não apresentasse provas de que foi fazer algo permitido pelo governo (trabalhar em hospital, por exemplo).
Vivendo em Buenos Aires, o repórter Raphael Sibilla, da Gazeta do Povo relatou o seguinte: “O decreto presidencial prevê que apenas algumas pessoas possam circular livremente: agentes de saúde, pessoas que trabalhem com o abastecimento de alimentos, jornalistas, entre outras profissões. Os demais cidadãos só podem sair de casa para ir a mercados e farmácias próximos às suas residências. Ter a permissão não nos exime da abordagem policial. Por três vezes já tive os documentos solicitados para averiguar se não estava burlando a determinação. Em uma semana 6.430 pessoas foram detidas, e ao todo 201 mil pessoas foram flagradas descumprindo a quarentena, que além de serem multadas em até 79.180 pesos (R$6.200), poderão responder a um processo penal. A detenção ocorre em casos mais graves, pessoas que já foram identificadas com sintomas ou que são reincidentes.”
Alguns meses se passaram, e temos melhores meios de comparar a efetividade do modelo Argentino, ou das quarentenas em si. A quarentena forçada na Argentina se tornou a mais longa do planeta, com sucessivas prorrogações. Em 15 de maio, a revista Veja dizia que o fim estava previsto para 20 de maio. O título da matéria era “Por que a Argentina tem resultados tão bons no combate ao surto”.
Em 31 de julho o UOL anunciou que a Argentina havia prorrogado a quarentena para 16 de agosto. Em 29 de agosto o UOL anunciou que o presidente argentino havia prorrogado aquela que já era a quarentena obrigatória mais longa do mundo para 20 de setembro. Em 18 de setembro, o anúncio feito pelo mesmo UOL era de que o governo Argentino teria prorrogado as proibições contra seus cidadãos por mais 3 semanas: 11 de outubro era o novo prazo.
Hoje, no site do Governo argentino, está listada uma série de proibições ainda impostas. Nas provícias que ainda estão sob o que o governo batizou de “Isolamento social, preventivo e obrigatório” (boa parte do país, inclusive a capital) para transitar as pessoas precisam de uma autorização especial do governo: o Certificado de Circulação. Até o momento, o governo não anunciou nova prorrogação.

As manchetes citadas nos primeiros parágrafos deste texto não poderiam ser publicadas hoje: O Brasil vem apresentando taxas diárias de mortes por Covid muito inferiores às da Argentina (e também inferiores às da Colômbia e do Paraguai, citados pelo Fantástico como exemplos a serem seguidos pelo Brasil).
Se mantidas as atuais taxas de óbito diário por Covid-19, a Argentina pode chegar ao topo global de mortes por milhões de habitantes nas próximas semanas. Para se ter uma ideia, o recorde de mortes diárias relacionadas a Covid-19 por milhão de habitantes no Brasil se deu em 30 de julho, quando o país teve 7,5 mortes por milhão. Desde 22 de setembro, a Argentina superou este número em 10 datas diferentes: o recorde (mundial, em toda a história da pandemia) foi em 02 de outubro, quando houve 74,14 registros de morte por Covid-19 para cada um milhão de argentinos. Ontem, 07 de outubro, foram 7,94 mortes por milhão: número superior ao recorde brasileiro. Anteontem: 9,96 por milhão, novamente mais mortes que o recorde brasileiro, observado em julho.
Considerando o número de mortes para toda a pandemia, o Brasil ainda está na frente, mas longe de uma diferença que possa colocar a Argentina ou a Colômbia como exemplos, como fez o Fantástico em maio. Se o Brasil tem cerca de 693 mortes por milhão, a Colômbia tem cerca de 530 e a Argentina tem cerca de 482. O problema é que as curvas destes dois países têm crescido mais rápido que a nossa, no caso da Argentina, muito mais rápida.

Se em 10 de setembro, quando o Brasil ultrapassou a marca de 600 mortes por milhão, a Argentina tinha apenas 231 mortes por milhão, hoje, quase um mês depois, o Brasil está próximo de atingir 700 mortes por milhão, enquando nossos vizinhos mais ao sul mais que dobraram a taxa para 482,84.
Sim: desde 10 de setembro, para cada 1 milhão de brasileiros, cerca de 93 morreram de Covid-19. Desde 10 de setembro, para cada 1 milhão de argentinos, cerca de 251 morreram de Covid-19.
ATIVISTA ATILA IAMARINO SAI EM DEFESA DAS QUARENTENAS DIANTE DE FRACASSO ARGENTINO
As quarentenas forçadas pelo Estado como estratégia padrão ouro no combate à pandemia de Coronavírus tiveram como seu principal garoto propaganda o epidemiologista britânico Neil Ferguson: foi ele o lider de alguns estudos que estimavam, a partir de modelos matemático-epidemiológicos, cenários mais apocalípticos ou menos apocalípticos caso os governos determinassem ou deixassem de determinar proibições contra seus cidadãos relativas à livre circulação e comércio.
A maioria dos países adotou de alguma maneira as recomendações de Neil, recomendações que nem ele próprio seguiu a risca (furou a quarentena que ele mesmo inventou para se encontrar com uma amante, uma mulher casada, episódio que o levou a pedir demissão de seu cargo no governo britânico).
Alguns países adotaram imediata e rigorosamente as recomendações de Neil, logo ao começo da pandemia (exemplo da Bélgica e da Argentina), outros se negaram a acatar em um primeiro momento (exemplo do próprio Reino Unido), outros tiveram disputas entre os governantes locais e nacionais tendo sido estabelecidas regras distintas e confusas mais distantes ou mais aproximadas das recomendações de Fergusson (exemplo do Brasil e dos Estados Unidos). Houve também países que nunca estabeleceram proibição ampla de trabalho e trânsito aos seus cidadãos, fundamentalmente se limitando a recomendações ou pequenas restrições (exemplo do Japão e da Suécia). Países com estratégias diversas não se clusterizaram em dois polos opostos: isto é, muitos países que tiveram quarentena forçadada e rígida desde os primeiros casos confirmados tiveram péssimos resultados, alguns países que nunca aplicaram medidas duras contra seus cidadãos tiveram baixas taxas de mortes.
Diante do fracasso argentino, ele saiu em defesa da efetividade das quarentenas forçadas utilizando um gráfico de mortes diárias e desenhando setinhas que – segundo ele – teriam relação de causa e efeito com a explosão de mortes naquele país.
Segundo o ativista, três fatores foram determinantes para a explosão de casos na Argentina, que até então vinha sendo usada como “garota propaganda” pelos “quarentenalovers”: a volta às aulas na província de San Juan; o relaxamento de algumas normas nacionais e a volta do funcionamento dos restaurantes.
Um problema: a explosão de casos tem ocorrido principalmente em Buenos Aires, onde houve 13 984 mortes até ontem. Em San Juan houve apenas 64. San Juan fica a mais de 1 000 quilômetros da capital. Atila não fez questão de explicar no seu tuíte como a reabertura das escolas em uma província distante, de população minúscula e com baixo número de casos pode afetar o fluxo da pandemia na gigantesca capital do país.
Será que os alunos de San Juan foram de bicicleta à capital fazer um lanche? O Google Maps estima 55 horas de trajeto: haja pedalada.

Outro problema: no gráfico usado por Atila também aparece a curva brasileira, mas sobre esta Atila não desenhou setinha nenhuma.
Se o tivesse feito, saberíamos que desde a reabertura dos estabelecimentos comerciais brasileiros (nos estados mais afetados elas ocorreram em junho e julho) as taxas diárias de mortes vêm caindo. Os dois estados com maior número absoluto de casos (e também os mais populosos) do Brasil são São Paulo e Rio de Janeiro. Em ambos os shoppings e comércio de rua voltaram a funcionar em junho, e os restaurantes em julho.
Embora não tenha ocorrido um controle central por parte de Brasília, a maioria dos estados brasileiros retomou suas principais atividades comerciais em momentos semelhantes ao das duas maiores metrópoles: os shoppings reabriram em junho em Pernambuco e no Ceará e em Julho na Bahia. Restaurantes, bares e academias voltaram a funcionar em 20 de julho em Pernambuco. No Ceará, os restaurantes já estavam funcionando em junho.
Se Átila tivesse feito também setinhas sobre a curva brasileira, ficaria difícil sustentar cientificamente as relações de causa e consequência estabelecidas por ele no gráfico.
Mas ninguém aqui disse que o Atila é cientista.

ESTUDO DA UNIVERSIDADE DE ENDIMBURGO: LOCKDOWN PODE CAUSAR MAIS MORTES POR COVID A LONGO PRAZO
Publicado ontem pelo British Medical Journal, um estudo dirigido pelo professor Graeme J Ackland da Universidade de Endiburgo e por mais três colegas indica que o cenário que estamos vendo na Argentina não é uma aberração, mas o previsível diante de quarentenas obrigatórias extremas: “Os achados deste estudo sugerem que intervenções imediatas se mostraram altamente eficazes na redução da demanda de pico por leitos de unidade de terapia intensiva (UTI), mas também prolongam a epidemia, em alguns casos resultando em mais mortes em longo prazo. Isso acontece porque a mortalidade relacionada a covid-19 é altamente inclinada para grupos de idade mais avançada. Na ausência de um programa de vacinação eficaz, nenhuma das estratégias de mitigação propostas no Reino Unido reduziria o número total previsto de mortes abaixo de 200.000.”
Os acadêmicos, no estudo, não negam o efeito imediato de controle dos casos imediatamente após o fechamento, mas estimam que os efeitos a longo prazo tendem a ser exatamente o de explosões de casos, que podem superar o total de casos diante de medidas menos drásticas: “O bloqueio em todo o Reino Unido como resultado da doença coronavírus 2019 (covid-19) foi implementado como uma forma altamente eficaz de reduzir a propagação da epidemia. O que este estudo adiciona é que (…) na ausência de uma vacina eficaz para covid-19, o fechamento de escolas resultaria em mais mortes em geral do que nenhum fechamento de escola”
Estabelecer causas e consequências em cenários complexos é mais difícil do que parece: não basta escolher eventos aleatórios em que se cruzou caminho com o gato preto ou se passou por debaixo de uma escada, muitas vezes as causas mais importantes são distais em relação aos efeitos observados.
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