Rio de Janeiro, 07 de outubro de 2020
Uma mulher foi presa ontem suspeita de ter quebrado o fêmur da própria filha. A menina tinha apenas 3 anos de idade, o caso aconteceu em Santa Catarina e as investigações apontam que a criança teria sido espancada por não ter aprendido ainda a dar descarga no vaso sanitário. No último domingo uma mulher foi presa em Mato Grosso do Sul: a prisão foi efetuada em flagrante. Um menino de 10 anos, seu filho, morreu durante um atendimento hospitalar: a criança era vítima de agressões praticadas pela mãe.
Em ambos os casos, a violência foi identificada por profissionais de saúde, que atenderam as crianças e identificaram as evidências de abuso. No Brasil, o Ministério da Saúde mantém dois sistemas epidemiológicos através dos quais é possível investigar alguns padrões de violência. O SIM (Sistema de Informação de Mortalidade) é baseado nos registros feitos por médicos na Declaração de Óbito. Já o SINAN (Sistema de Informações de Agravos de Notificação) é baseado em informações passadas pelos médicos ao Ministério da Saúde relativas a alguns tipos de atendimento.
Expliquei neste post e neste outro as diferenças entre o SIM e o SINAN e os motivos pelos quais acredito que o SINAN é um sistema geralmente inútil para fazer inferências precisas sobre violência: a metodologia utilizada no SINAN apresenta viéses explícitos (como o fato de que para algumas agressões vítimas do sexo masculino não são notificadas) quanto implícitos (como o fato sabido de que homens procuram menos frequentemente atendimento médico).
Expliquei também que quanto a crianças menores de 10 anos estes viéses são menos prováveis de interferir na leitura dos dados, tornando os dados do SINAN mais úteis para fazer inferência sobre esta faixa etária do que sobre as demais.
No ano passado, Quem a homotransfobia não matou hoje? publicou uma série de postagens sobre os números do SINAN relativos a atendimentos médicos de crianças e adolescentes vítimas de violência em 2017.
Em 2018 o Ministério da Saúde 51 099 notificações de violência contra crianças menores de 10 anos de idade: foram crianças levadas a hospitais e clínicas de todo o país e em cujos atendimentos foram identificadas indícios de violência.
MAIORIA DAS NOTIFICAÇÕES SÃO DE VIOLÊNCIA CONTRA MENINAS, MENINOS SÃO A MAIORIA DAS VÍTIMAS DE VIOLÊNCIAS ATRIBUÍDAS A MÃES E PAIS.
A grande maioria das notificações de agressões contra menores de 10 anos de idade se referem a violências dentro da própria casa: 32 918, mas há uma curiosa inversão: se a maioria das vítimas em geral são meninas (27 794 vs 23 273), quando se considera apenas agressões cometidas por mães ou por pais, meninos são a maioria das vítimas. Mães agridem mais frequentemente que os pais, isso pode ser explicado – ao menos parcialmente – pelo fato de passarem mais tempo médio com os filhos.
Quanto ao tipo de violência, foram 12 670 notificações de violência física, 7 226 de violência psicológica ou moral, 665 de violência por meio de tortura, 13 274 de violência sexual, 33 de tráfico de seres humanos, 298 de violência de econômica, 26 955 de negligência ou abandono, 243 de trabalho infantil, 58 de violência por intervenção legal (que é quando, por exemplo, uma criança é baleada em uma troca de tiros entre policiais e criminosos) e 1 594 de outros tipos de violência.

QUESTÕES SOBRE A METODOLOGIA QUE PODEM INTERFERIR NOS DADOS
O SINAN se baseia tanto em dados de anamnese (informações passadas pela criança ou pelo responsável que a está acompanhando ao profissional de saúde) quanto de exame clínico (informações obtidas pelo próprio médico ou outro profissional de saúde ao avaliar a presença de hematomas, de calcificações, de anormalidades em exames laboratoriais ou de imagem, de lesões no aparelho reprodutivo ou de sinais de trauma psicológico).
Por este ponto, os dados podem sofrer a interferência de informações falsas produzidas durante a anamese, sobretudo em processos de alienação parental. Especialistas como a juíza Dora Martins, da Vara Central da Infância e da Juventude do Tribunal de Justiça de São Paulo ou a psicóloga Glícia Barbosa de Mattos Brazil do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro concordam que a ampla maioria das acusações em juízo de abuso sexual por parte de um dos progenitores (geralmente o pai) é falsa e cometida pelo outro progenitor (geralmente a mãe).
A juiza Dora disse certa vez em entrevista à Veja que “Em ações litigiosas mais graves, em que a pessoa que detém a guarda acusa o ex de negligência, alcoolismo, violência doméstica ou pedofilia, o genitores-visitantes não podem deixar o prédio. O encontro se dá em uma
salinha. ‘Cerca de 70% das denúncias são falsas (…). A mãe acusa o pai por vingança, para afastá-lo do convívio com a criança. Até que tudo seja esclarecido, o visitário é o único caminho’.”
Já a psicóloga Glícia afirmou ao jornal carioca Extra que “Na maioria dos casos, a mãe está recém-separada e denuncia o pai para restringir as visitas “. Lindomar Darós, também psicólogo do judiciário carioca, atuando na Vara da Infância e Adolescência de São Gonçalo, afirma na mesma matéria que “Quando a criança é muito pequena, tem dificuldade para diferenciar a fantasia da realidade. Se repetem que sofreu o abuso, aquilo acaba virando uma verdade para ela”. Darós fala em 50% das denúncias serem falsas, Glícia fala em 80% e Dora fala em 70%. Não existem números oficiais ou e não sabemos de pesquisa quantitaiva mais apurada. O fato é que especialistas concordam que há uma alta prevalência de falsas acusações de abusos com objetivos de alienação parental.
Uma vez que o SINAN seja preenchido também com base na anamnese, que a anamnese infantil seja influenciada (e muitas vezes exclusivamente realizada) pelo responsável que a levou ao hospital e que a consulta hospitalar é parte importante na formulação de denúncias do tipo, é preciso considerar a possibilidade de que algumas das notificações se refiram a casos em que um progenitor relatou falsamente uma agressão por parte do outro progenitor a fim de usar o atendimento médico como peça judicial.
Por outro lado, o campo sobre autoria da agressão pode ser preenchido tanto quanto o médico tem informação sobre o autor, quanto com base na suspeita razoável dele (o campo se chama literalmente “provável autor”). Neste sentido, um médico que atenda uma criança com sinais de fratura provocada por violência e que relate na anamnese apanhar do pai e da mãe poderá indicar mutuamente como “prováveis autores” o pai e a mãe, mesmo não tendo certeza quanto à autoria da fratura ter partido de um, de outro, de ambos ou de nenhum dos dois.
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