Ao final do século XX a legislação brasileira mantinha um espírito bastante igualitário no tocante a sexo e etnia. Não havia nenhuma lei que previsse tratamento diferenciado em relação a raça/etnia/cor. Existiam algumas legislações que tratavam homens e mulheres de modo diferente: a aposentadoria mais cedo para mulheres, a obrigação de se alistar e servir às forças armadas, o crime de sedução e regras de pensão, mas alguns destes pontos estavam sendo revistos.
A virada do século mudou os ventos. O barco jurídico, que rumava para uma cada vez maior igualdade legal entre os cidadãos independente de raça ou sexo, passou a navegar rapidamente em direção às “discriminações do bem”: normas legais racistas e sexistas apresentadas como soluções para desigualdades (reais ou inventadas) entre homens e mulheres ou entre negros e brancos.
O estopim foi dado com a adoção do sistema de cotas racistas por algumas universidades. Em 2001, ministro Marco Aurélio, do Supremo Tribunal Federal, defendia a adoção de tais medidas como solução temporária. Em Ação afirmativa ao redor do mundo, o economista e filósofo Thomas Sowell explica que todas as medidas de “discriminação positiva” são inicialmente propostas sob a alegação de que são temporárias, mas que ao contrário – uma vez tendo sucesso em ser implementadas – elas são indefinidamente mantidas e expandidas.

A previsão de Sowell, baseada no estudo minucioso do surgimento e da evolução de práticas legais racistas em diversos outros países, combina perfeitamente com o que ocorreu no país desde 2003, quando a Universidade do Estado do Rio de Janeiro estabeleceu a primeira seleção com base em critérios racistas do país. A partir da introdução do racismo na seleção do vestibular estadual do Rio de Janeiro, basicamente todas as universidades públicas e concursos públicos brasileiros estabeleceram cotas racistas, alguns deles estabeleceram cotas para travestis ou homossexuais em geral.
O Estado do Rio de Janeiro determinou prazo de 10 anos para o fim do sistema. Como Sowell prevê em sua obra, ao final dos 10 anos o sistema foi prorrogado por nova lei, em vez de ser extinto.
Já no âmbito das leis discriminatórias com base em sexo, duas leis criadas neste século se destacam: a Lei Sexista Maria da Penha (2006) e a Lei Sexista do Feminicídio (2015) tratam de modo diferente a crimes idênticos, a depender do sexo da vítima.
Uma das mais severas implicações da LSMP é a criação de uma penalidade severíssima (a expulsão do lar e a proibição de transitar livremente em espaços públicos) desde o momento da denúncia, sem que seja necessária qualquer prova contra o acusado.
Tratam-se das “medidas protetivas de urgência”. Basta uma esposa apresentar denúncia contra seu marido e declarar que deseja tal tipo de medida para que ele possa, por exemplo, ser proibido de entrar na própria casa ou de transitar livremente (se ele trabalhar na mesma empresa que a esposa, poderá ser impedido de entrar no local de trabalho, por exemplo).
A Justiça tem deferido este tipo de pedido mesmo em casos em que se comprova a falsidade das acusações: foi o caso da ex-paquita Ana Paula Pituxita, que conseguiu medida protetiva contra seu ex-marido alegando agressões físicas. Ficou comprovado que as evidências apresentadas por Ana Paula foram forjadas (a própria mulher produziu as lesões que apresentou à polícia). Ainda assim a medida foi mantida e renovada.
Também no direito de família e no direito civil há legislações discriminatórias com base em sexo. Uma delas é a lei que regulamenta o programa habitacional Minha Casa, Minha Vida. Uma alteração feita pela ex-governanta Dilma Rousseff determinou que os imóveis comprados em conjunto por marido e mulher e financiados pelas regras do programa deveriam ficar integralmente em nome da mulher em caso de separação.
O PROBLEMA DA CLASSIFICAÇÃO: COMO DEFINIR QUEM PODE SER BENEFICIADO?
Um curioso problema que tem sido enfrentado pelos poderes executivo e judiciário diante da profusão de legislações discriminatórias produzidas nas casas legislativas é o da delimitação quanto a quem tem direito de ser privilegiado pelas leis discriminatórias.
Pretos são privilegiados pelas cotas racistas e brancos não são, mas e os pardos? O critério de definição racial estabelecido pelo Estatuto Racial é o da autodeclaração, mas e se um loiro descendente de poloneses se declarar negro? Mulheres têm direito a privilégio na divisão de bens, mas e se um travesti for casado com um homossexual não femilizado? Mulheres se aposentam mais cedo, mas e uma lésbica masculinizada?
Estas são perguntas que o Ministério Público, o Poder Judiciário e os diversos órgãos da administração pública têm sido chamados a responder.
O Estado brasileiro vem enfrentando estes dilemas típicos do século 21 com receitas opostas, a depender de se a questão se trata de discriminação com base em raça ou discriminação com base em sexo.
Quanto às discriminações com base em raça, houve – no começo de suas aplicações, na década passada – duas tendências. A UERJ, por exemplo, adotou desde o início o critério da autoclassificação, gerando muita reclamação quanto ao fato de que pessoas de pele clara, loiras, de cabelos lisos e olhos azuis se inscreviam se declarando pardas ou negras ou indígenas e eram aprovadas por meio de critérios facilitados, menores notas de corte, além de fazerem jus a outros benefícios (a UERJ, assim como outras universidades, concede bolsas e outras facilidades aos cotistas).
Já a Universidade de Brasília, outra das pioneiras na discriminação, adotou inicialmente o critério da heteroidentificação. Os candidatos precisavam ser avaliados por funcionários que tinham a função de confirmar se o vestibulando era de fato negro. Foi na UnB que se tornou famoso o caso dos irmãos gêmeos univitelinos (idênticos), um dos quais foi classificado como branco e outro como negro pela banca avaliadora do sistema racista
Desde então, e por alguns anos, o método da autodeclaração se tornou o único aplicado, até que ativistas do movimento negro passaram a protestar pelo fato de que muitos brancos estavam passando em vestibulares e concursos através de cotas racistas. Pouco a pouco as instituições foram criando tribunais de verificação racial, comissões de heteroidentificação. Diversas decisões têm reiterado como lícitos os estabelecimentos destes tribunais: os ministérios públicos da União e estaduais têm pressionado universidades e autarquias públicas a estabelecê-los, quando não existem, para evitar fraudes.
Por outro lado, no que diz respeito às pendengas quanto ao direito a se beneficiar de privilégios legais femininos, o Estado brasileiro tem adotado reiteradamente o critério da autodeclaração. Em vez de tribunais para verificação quanto ao sexo biológico do indivíduo, o Estado tem acatado a autodeclaração de “gênero” para definir tanto a oferta quanto a retirada de privilégios legais.
Pessoas do sexo masculino podem obter os privilégios legais femininos se forem até o cartório e declararem se reconhecer como pessoas do sexo feminino. Aposentadorias já foram concedidas a pessoas do sexo masculino que declararam em cartório como se identificando como pessoas do sexo feminino.
Do mesmo modo, os privilégios femininos têm sido negados a pessoas do sexo feminino que se declarem pessoas do sexo masculino: aposentadorias precoces e pensões vitalícias militares já foram negados a mulheres que se declararam homens e obtiveram certidão neste sentido.
SEXO, ETNIA E RAÇA: DEFINIÇÕES
Há dois sexos, e não há intersecção entre eles na espécie humana. O sexo é definido em termos biológicos pelo tipo de gameta produzido pelo indivíduo. Em animais, se o gameta produzido for espermatozoide, o sexo é masculino; se for óvulo, o sexo é feminino. Animais que produzem ambos os gametas ao mesmo tempo são chamados hermafroditas, há espécies em que o indivíduo muda de sexo, produzindo espermatozoides em uma fase da vida e óvulos em outra. Não há hermafroditismo verdadeiro ou mudança de sexo ao longo da vida em humanos.

Em seres humanos, o sexo é definido geneticamente pela presença do cromossomo Y no 23º par de cromossomos e o sexo feminino é definido pela ausência do Y. Mesmo em casos de dissomia, é a ocorrência do Y que definirá o sexo. Como se pode ver na ilustração abaixo, a síndrome de Turner só afeta mulheres, afinal esta patologia é definida pela existência de um único X na 23ª posição do careótipo. Já a síndrome de Klinefelter só afeta homens, ela é definida pela existência de dois X e de um único Y.

Já quanto à etnia a questão é bem mais confusa, a começar pela definição de raça/etnia e pela delimitação dos grupos. Ibéricos e escandinavos pertencem ao mesmo grupo étnico? E lusitanos e sicilianos? E kenianos e nigerianos? São quantas as etnias? Branca, amarela, negra, indígena e mestiça? Ou dezenas? Etnia é o mesmo que raça? São quantas as raças? Quais?

Os recentes testes genéticos de ancestralidade se tornaram febre mercadológica recente. Resultados de brasileiros submetidos a estes kits geralmente indicam presença de ancestralidade de diversos continentes e povos.
Um exemplo famoso é o cantor Neguinho da Beija-Flor, reconhecido como negro até no nome artístico, mas que ao ser submetido a um destes testes descobriu ter mais contribuição genética europeia e branca do que africana e negra em seu genoma (Neguinho deve ter tido avós ou bisavós brancos, mas acabou recebendo traços físicos mais próximos aos dos avós ou bisavós negros). É comum que irmãos filhos de mesmo pai e de mesma mãe nasçam com características fenotípicas distintas: um com traços mais europeus e outro com traços mais africanos. Os traços fenotípicos que são usados para definir etnia são múltiplos (tom de pele, cor e textura do cabelo, formatos da face, dos olhos e do crânio, cor da íris…) e se mesclam de forma muito variada em pessoas mestiças.
O QUE DIZ O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL?
Em 28 de fevereiro de 2018 o Supremo terminou a votação sobre a controvérsia quanto a que exigências deveriam ser feitas para que uma pessoa do sexo feminino fosse reconhecida legalmente como sendo do sexo masculino, ou vice-versa: a Ação Direta de Inconstitucionalidade 4275.
De acordo com o texto do portal Consultor Jurídico, a decisão foi de que “o interessado na troca poderá se dirigir diretamente a um cartório para solicitar a mudança e não precisará comprovar sua identidade psicossocial, que deverá ser atestada por autodeclaração“. Foram afastadas pelo ministro as exigências perícias profissionais.
Já durante a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 186 e a Ação Declaratória de Constitucionalidade(ADC) 41, momentos em que o STF decidiu respectivamente sobre o sistema de cotas racistas nas universidades e sobre o sistema de cotas racistas no serviço público, os ministros entenderam que o Estado pode exigir mais do que a mera autodeclaração do candidato, aplicando para isto medidas de heteroidentificação (ou seja: estabelecendo comissões formadas por profissionais que avaliam caracteres fenotípicos do candidato a fim de julgar se ele mentiu ou falou a verdade ao se declarar negro ou pardo ou indígena).
Desta maneira, se vivesse hoje no Brasil, o Superman estaria mais amparado pelas recentes decisões judiciais, inclusive as oriundas da Suprema Corte, quanto a se passar por Supergirl (ganhando, por exemplo, o privilégio de se aposentar mais cedo ou de ficar com toda a casa que financiou junto com o ex-namorado) do que quanto a se passar por Super Choque (ganhando, por exemplo, o privilégio de passar em concursos e vestibulares tirando nota menor que seus concorrentes).
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