Cotas para pobres e estudantes de escola pública são mesmo melhores que as cotas racistas? – CAPÍTULO II

CAPÍTULO 2: MUNDO DAS IDEIAS VS MUNDO REAL

Quando publiquei em facebook.com/naomatouhoje o Capítulo I desta digressão, recebi duas ressalvas que achei interessantes de serem discutidas. (O link não está mais acessível: sobre isso, ver nota explicatica no final do texto).

Uma afirmando que eu escolhi maus exemplos: que o CPII não seria um bom representante das escolas públicas nem o suburbano Colégio Realengo seria um bom representante das escolas particulares. Uma síntese deste argumento está no comentário do Bruno Garcia: ‘Concorda que uma média 8,5 de um estudante de rede estadual pode significar mais que um 8,7 de um estudante do São Bento? ‘

Outra ressalva foi a feita pelo Douglas de Souza, ele antecipa uma questão para a qual eu já havia deixado um gancho no final do texto, lembrando da existência de critérios de corte de renda que impediriam que os típicos alunos de classe média alta e alta das escolas federais realmente levassem vantagem sobre seus concorrentes menos afortunados das escolas particulares de periferia.

O sistema de cotas sociais costuma ser idealizado exatamente da mesma maneira que o Bruno fez.

Imagina-se um jovem de nome ‘Leonardo Hadju Voloch’, morador do Leblon, aluno da Escola Parque, loiríssimo de olhos claros, matriculado desde os 5 anos nos cursos de alemão e inglês e fluente em ambos os idiomas. Filho de um engenheiro da Esso com uma psiquiatra renomada.

Imagina-se – no extremo oposto – um jovem de nome Jobson de Souza Silva, mulato de pai e mãe, morador do Jacarezinho, filho de pedreiro com faxineira, sabe conjugar o verbo ‘to be’ porque aprendeu no Google, mas quando fica nervoso erra.

Imagina-se que Jobson fez 800 pontos e Leonardo fez 870. Quem mostrou mais inteligência e mais afinco nos estudos? Onde Jobson teria chegado se tivesse tido a mesma oportunidade que Leonardo? Será que – se, com tamanha diferença de oportunidades, Jobson foi só um pouco pior no vestibular – o menino do Jacarezinho não tem até mais chances de brilhar na academia?

Vamos deixar essas perguntas para outro capítulo e ficar apenas com o cenário idealizado: ele não é nem minimamente realista.

Se o cenário realmente se dividisse entre alunos do São Bento e das escolas públicas típicas a coisa estaria mais ou menos resolvida.

SÃO BENTO FAETEC ESTADUAL
No Rio de Janeiro o colégio católico São Bento é conhecido por educar boa parte dos filhos da mais alta elite econômica, os que pertencem à rede estadual comum educam quase todos os filhos de favelados que chegam ao Ensino Médio. Os também colégios públicos da rede estadual vinculados à FAETEC têm um perfil mais de classe média assalariada.

O problema é que esta divisão clara entre os privilegiados e os oprimidos só existe no mundo das ideias.

No mundo real (e aqui eu defendo a escolha dos colégios trazidos no Capítulo I ) aí estão as escolas federais de altíssimo padrão de ensino e frequentadas pela classe média alta; as escolas particulares de subúrbio de baixo padrão de ensino e frequentadas pela classe média baixa; as escolas da FAETEC – publicas e estaduais – porém de padrão de ensino um pouco melhor e também com um perfil socioeconômico mais de classe média para complicar o cenário e deixar bastante difícil a tarefa de dizer quem é Leonardo e quem é Jobson nesta história toda.

A ferramenta estabelecida pelos sistemas de cotas para proceder esta divisão é a declaração de uma renda familiar inferior a um salário mínimo ou um salário mínimo e meio por pessoa da família.

Quanto a isso, o Douglas também fica preso ao mundo das ideias: no mundo das ideias a composição familiar é algo evidente e verificável. No mundo real não, Douglas.

No mundo real, composição familiar é um conceito auto-declarado, e com maior razão e com ainda menor possibilidade de checagem objetiva do que etnia.

Não existe obrigatoriedade legal de uma pessoa adulta se manter na mesma família que os pais e o conceito legalmente aceito de composição familiar sequer é o de pessoas vivendo sobre o mesmo teto. E nem poderia ser.

Vou exemplificar com uma história tirada da minha família: tenho dois primos adultos que moram com a mãe, ambos já foram casados: um deles se separou e voltou pra casa da velha, o outro deu um tempo na relação mas sem se separar definitivamente da esposa que antes morava com ele e a minha tia no mesmo apartamento, ela foi passar um tempo na casa dos pais em MG e agora parece que a situação ficou definitiva.

Pensando num cenário assim, como deveria ser definida a composição familiar dos meus primos e tia?

a) 1 familia = 1 casa. Meu primo separado, minha tia, meu primo temporariamente separado (mas não a esposa do meu primo temporariamente separado nem a filha do meu primo separado que vai pra lá um fim de semana a cada dois).

b) 3 famílias = 3 casas. Meu primo separado e sua filha numa família. Meu primo temporariamente separado e sua esposa noutra. Minha tia velha numa família de uma pessoa só.

c) 1 família = 3 casas. Meus dois primos, a filha de um, a esposa de outro e minha tia velha todos compondo uma família só.

Qual é a mais correta? Se o recenseador do IBGE passasse por lá perguntando quais era a composição familiar da minha tia, a quem ela deveria mencionar? A neta não mora com ela, nem vive de sua renda; mas o filho mora com ela, e ela (minha tia) vive parcialmente da renda do filho. Mas a filha do meu primo vive da renda dele, embora não more com ele.

E antes de se separarem: meu primo que morava com a mãe, o irmão e a esposa era membro de uma família de quatro pessoas? Ou era membro de uma família de duas pessoas que se amontova num apartamento com outra(s)?

O que quero dizer com estes exemplos pessoais é que a definição prática de composição familiar nem de longe é tão intuitiva quanto te parece, Douglas.

E a legislação sobre o assunto atenta a esta dificuldade, garantindo que a pessoa possa declarar sua composição familiar com bastante liberdade (talvez – exceto – para o caso de filhos menores de idade, mas não é o caso aqui). E é esta brecha que é usada por muitos alunos de alto padrão financeiro oriúndos de escolas federais.

Parte significativa dos vestibulandos de classe média ou classe média alta são jovens em torno dos 18~19 anos que nunca trabalharam e que não têm nenhuma fonte de renda direta em seu nome.

Muitos alunos dentro deste perfil que não cabem nos critérios de renda simplesmente omitem os pais na composição familiar, declaram ser membros de família individual e sem renda própria (ou inventam um trabalho autônomo, pra não levantar suspeitas). Mesmo considerando que as universidades costumassem se dar ao trabalho de investigar a honestidade das declarações, o que não é feito exceto quando pressionadas via alguma denúncia ao MP ou coisa parecida,, é muito difícil comprovar ilegalidade neste tipo de processo.

Uma hora ou outra o MPF faz uma graça, a universidade faz uma investigaçãozinha pra londrino ver e caça a matrícula de um ou dois casos mais evidentes (assim como faz de vez em quando com um ou outro loiro que se declarou negão).

Mas na praxe, no mundo real, fora do campo todo certinho e com tudo no lugar, o critério de corte de renda é imensamente fácil de ser burlado, e o é.

Na UFRJ – por exemplo – apenas cotistas e alunos que comprovem renda familiar menor que um salário mínimo têm direito a bilhete gratuito de passagem de ônibus.

Para quem morar no Rio pode ser um experimento social curioso ver quem entra no 485 (ônibus que leva do principal campus à área mais nobre da cidade) no Fundão com este bilhete (é só observar quem passa na roleta mais próxima do motorista, a roleta da gratuidade) e em que ruas soltam. Devem ser todos empregados domésticos de olhos azuis, porque olha… eu fico bobo.



NOTA: Infelizmente o link para o post original e para os comentários que deram origem a este novo post não está mais acessível, graças a uma decisão da juíza Marcia Maciel Quaresma, relativa ao processo aberto pelas autoras do estudo fraudulento Lesbocídio. A juíza estabeleu a retirada do ar de todo o conteúdo da página e o Facebook acatou. A decisão foi revista pelo TJRJ, mas o Facebook não acatou a revisão. Caso não conheça o caso, clique aqui.

Uma resposta para “Cotas para pobres e estudantes de escola pública são mesmo melhores que as cotas racistas? – CAPÍTULO II”.

  1. MUITO BOM! Texto excelente.

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