A leitura míope dos feministas sobre o papel dos papéis de gênero

Camille Paglia disse certa vez – se não me engano num bate-papo com Chistina Hoff Sommers – que “o feminismo moderno é um movimento de jovens burgueses que acham que o mundo é o quintal de suas casas”.

Esta foi uma das mais precisas definições do que o pensamento tão comum entre jovens universitários de classe média pra alta sobre questões de gênero me parece ser.

A completa extinção de papéis de gênero só se tornou uma coisa a sequer ser imaginada nas últimas 5 décadas da história humana.

Antes disso, boa parte do que feministas classificam como “sociedade machista patriarcal feita para oprimir as mulheres e beneficiar os homens” era condição absolutamente necessária para manutenção da espécie como um todo e o melhor modo que os indivíduos de ambos os sexos tinham para levar as coisas para si próprios.

Ainda hoje – fora dos grandes centros e das camadas mais abastadas as suas regras são muito úteis para os indivíduos destas camadas: motivo pelo qual se sustentam mais na ‘periferia’.

Por que os papeis de gênero nascem? Por que os homens ficaram – e ficam ainda, de forma menos intensa – com a prevalência na obrigação de sustentar e proteger suas famílias, a qualquer custo, enquanto as mulheres ficaram com a prevalência na obrigação de cuidarem dos assuntos domésticos e da prole?

Porque nossa gestação dura 9 meses. Porque nosso período de amamentação na natureza durava pelo menos dois anos. Porque até uns 50 pra 100 anos atrás para que um, dois ou três filhos ‘vingassem’ (chegassem à idade adulta) uma mulher engravidava e paria e amamentava entre uma e duas dezenas de vezes ao longo da vida. Porque basicamente todos os trabalhos disponíveis fora de casa eram intensamente braçais e altamente periculosos. Porque basicamente todos os trabalhos domésticos exigiam muito tempo de dedicação, embora não tanto esforço físico. Porque boa parte da nossa espécie e quase 100% da ancestralidade dos humanos atualmente existentes no Ocidente evoluiu em ambientes onde os recursos eram escassos e dispersamente distribuídos (em Ecologia este é um dos fatores que implica em alta divisão do trabalho e dimorfismo comportamental entre os sexos, relaciona-se com o padrão de proteção de território e forrageamento sendo um papel dos machos).

Não menos importante, mas num outro plano: há as diferenças reprodutivas entre os dois sexos. Qualquer organismo biológico – a princípio – é uma máquina de lutar para deixar cópias do seu material genético adiante.

Mas em algumas espécies – a nossa é uma muito típica – machos e fêmeas enfrentam desafios diferentes diante desta tarefa.

O casamento tradicional é um acordo ‘de cavalheiros’ que nasce basicamente do fato de que a concepção em si (jogar 50 ml de esperma dentro de um útero) é energeticamente barata para um homem, mas o cuidado parental (prover e proteger até a idade adulta) é custoso, e ele nunca tem 100% de certeza de que está se matando de trabalhar para sustentar e proteger seus próprios filhos ou os do rei ou do padeiro. Além disso conseguir fêmeas dispostas a gerar um filho dele também dá trabalho já que…

… a concepção para as mulheres é cara (gestação e amamentação e danos permanentes à saúde), limitada (não pode engravidar quantas vezes quiser na vida) e os filhos (na natureza) dificilmente sobrevivem apenas com o cuidado dela…

…motivo pelos quais nossas fêmeas são mais criteriosas quanto a ‘de quem vão gerar um filho’ (sexo) e nossos machos quanto ‘aos filhos de qual mulher vão investir esforço para manter vivos’ (casamento).

Neste caso o casamento tradicional nasce com regras distintas em função das necessidades e limitações de ambos: o marido promete cuidado parental aos filhos de uma mulher específica (sustento e defesa) e – em troca – tal mulher promete que os filhos dela serão dele.

É por isso que (ainda hoje) quase sempre é o homem quem vai preso quando não paga pensão. E é por isso que até a metade do século 20 mulheres tinham diversas sanções legais quando traiam o marido, inclusive prisão.

Aí o jovem nasceu no Leblon nas últimas 3 décadas, num cenário de possibilidades e limitações totalmente diversas daquelas que os seres humanos enfrentaram por milênios e que milhões de seres humanos ainda enfrentam – quanto mais longe do Leblon vivam.

Todas as possibilidades de trabalho que ele vislumbra desde a mais tenra juventude são em salas com ar-condicionado em cadeiras bem acolchoadas.

Se for mulher – não pretende passar por mais de duas gestações, e a primeira não será antes dos 25 anos [já que vacina e antibioticoterapia e demais avanços médicos tornaram em quase 100% as chances de um filho ‘vingar’].

Pode fazer sexo com quantas pessoas diferentes quiser com risco baixíssimo de gravidez indesejada.

Os serviços domésticos estão todos terceirizados a máquinas mega automatizadas ou a empresas ou a empregados pessoais.

Há teste de DNA para comprovar paternidade [ a principal função do casamento tradicional morre aqui: agora a mulher não precisa ter assinado um papel para exigir que um homem sustente os filhos de ambos, e agora um homem – de maneira ainda não tão fácil, infelizmente – pode se eximir de cuidar de filhos que não sejam seus, mesmo que tenha assinado papeis].

Começa a namorar algum colega de faculdade e – quando se formam e terminam mestrado ou doutorado – começam a dar aulas em alguma universidade ou colégio conceituado e se casam.

Aí assumem para si uma divisão plena de todos os afazeres e responsabilidades – que basicamente se limitam a levar os filhos no judô, nos cursos de inglês e alemão e na escola, lavar algum copo sujo de suco, pagar as contas de toda a terceirização e automatização dos serviços domésticos – e acham que qualquer cenário que destoe ou destoou disso na história é opressivo e preconceituoso.

Amaldiçoam toda a história da humanidade como tendo sido machista e discriminadora contra as mulheres.

Não conseguem entender como a faxineira que vai fazer a limpeza todas as quintas e que sempre fala que tem que sair correndo pra preparar a janta do marido – que trabalha numa carga horária de o dobro horas semanais que ela, descarregando saco de cimento de uma loja de materiais de construção – ainda pode se submeter a uma relação tão ‘machista’.

Como diz Camille: feministas burgueses contemporâneos acham que o mundo é o quintal de suas casas.

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2 respostas para “A leitura míope dos feministas sobre o papel dos papéis de gênero”.

  1. Por que você precisa recorrer a uma caricaturização tão grotesca das pessoas que refletem sobre gênero e assuntos afins? Você parece querer resumir e solucionar em poucos parágrafos questões tão vastas e complexas, servindo-se principalmente de uma analogia descuidada e irrestrita com outras espécies animais. Cheguei até aqui por causa do infeliz acontecimento no lançamento do dossiê sobre lesbocídio. A princípio fiquei espantado com a truculência e irracionalidade de seus interlocutores no evento, mas após a leitura de outros textos seus esta impressão se transformou. Você não parece muito mais interessado do que eles em uma abordagem honesta e aprofundada de seus temas; ao contrário, assemelha-se-lhes ao empregar ferramentas e agudez epistemológicas conforme a conveniência (ou não) de seus resultados. Dado isto, acho que entendi os protagonistas do evento um pouco melhor. Se eles não se diferenciam absolutamente de você no que toca a boa-fé e robustez argumentativa, pesa a favor deles o fato de defenderem temas vitais às suas existências materiais e subjetivas. Você já tinha visto a coisa por este ângulo?

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    1. Sobre quais pessoas que refletem sobre questões de gênero e afins eu tracei uma caricatura grotesca?

      Camille Paglia e Karen Straughan, citadas no texto, são pessoas que refletem sobre questões de gêneros e afins. Eu as caricaturizei?

      Aliás, sendo ambas mulheres, uma delas transexual e lésbica, a outra bissexual, elas têm bastante lugar de fala e vivência (este conceito tosco ao qual você faz referência implícita ao falar “suas existências materiais e subjetivas”).

      Você é desoneste ao dizer que ambos (eu e as estudiosas da UFRJ) somos comparáveis em boa-fé e robustez argumentativa: tenho certeza de que você não julga intima e honestamente que alguém que qualifique como vítima de crime de ódio a uma lésbica morta trocando tiros com a polícia carregue a mesma boa fé e robustez argumentativa de alguém que diz que crimes de ódio existem sim, mas que este caso não foi (assim como não foram a maioria dos listados por elas), que é o cerne da minha disputa com as estudiosas a quem você me compara.

      O que te ofendeu aqui, pessoa, não foi a estrutura dos meus argumentos nem o tamanho da minha honestidade intelectual, o que te ofendeu foi o meu tom ácido, sarcástico para tratar de temas que ainda te são caros.

      Eu entendo a sensibilidade perante meu tom, mas não pedirei perdão pelo seu ressentimento.

      Te recomendo – já que você tem estima por pessoas que tratem de questões de gênero e afins de acordo com “suas existências materiais e subjetivas” – que se aventure em busca das duas mulheres mencionadas no texto: elas tratam o tema de acordo com o que você chama de “existências materiais e subjetivas” delas (comece pelo vídeo linkado no final do texto: certeza de que lhe será útil).

      Não se restrinja a elas, procure outras pessoas que tratam das questões de gênero e afins de acordo com “suas existências materiais e subjetivas”: Christina Hoff Sommers, Janet Radcliffe-Richards, Erin Pizzey, Maria de La Paz Toldos Romero, Roxana Kreimer, Marta Iglesias, Teresa Gimenez Barbat… ( A Marta – neurocientista especialmente interessada no campo da Biologia do Comportamento Humano – tem um artigo fantástico intitulado “Why Feminists Must Understand Evolution” que trata precisamente do foco deste post, sugiro googlear ).

      Cuidado, algumas das autoras, pesquisadoras e ativistas acima são bastante ácidas. Leve um lenço consigo quando for ter com elas.

      Abraços, e obrigado pelo feedback.

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